sábado, 21 de janeiro de 2017

A assombração.



Caminhar pelo centro da Cidade de Goiás a noite é um convite ao pesadelo.
As ruas mau iluminadas pela bruxuleante luz de antigos postes e as fachadas imponentes das catedrais causam sensações aterrorizantes em mentes sensíveis.
Eu tinha saído do hotel as cinco da tarde para uma reunião na casa de um deputado. Iriamos criar uma nova droga financiada pelo governo e a comissão que aquele senhor presidia exigia dez por cento do contrato para aprovar.
Consegui negociar e reduzi a margem da propina para cinco por cento e o restante em lucro direto pela venda da patente para o sistema público de saúde.
Era uma droga contra a nova febre que tinha se alastrado pelo nordeste e já vinha matando milhares de pessoas todos os anos.
Sai dali tarde da noite, me ofereceram carona, mas por algum motivo eu os temi e decidi ir a pé.
Eram poucas quadras que me separavam do hotel.
Do alto das sacadas com cerâmicas portuguesas, plantas exuberantes pareciam brilhar ao meu redor.
Quando passei próximo a uma casa de paredes caiadas, com gárgulas na porta, aconteceu algo inesperado.
Um dos animais de pedra chamou meu nome:
João, João! Um som profundo e desencarnado me paralisou e levou meus olhos até os dois demônios de pedra.
No mesmo instante uma das criaturas se levantou e começou a recitar um poema.
_ Meu senhor morreu de peste.
_ Minha senhora de malária.
_ O filho de tristeza.
_ A filha fugiu para Cantuária.
_ Somos guardiões de uma mansão esquecida.
_ Olhamos pelos mortais e sua vida ensandecida.
_ Somos guardiões, de horríveis feições, mas pelo bem combatemos.
_ Tua alma está suja, hoje pelo Deus que há nos céus, iremos lhe limpar!
E quando terminou essa frase tocou na outra peça de mármore que adquiriu vida.
Ao ver aquilo as minhas pernas saíram da paralisia e mesmo tendo defecado em minhas calças pelo medo, sai berrando a plenos pulmões.
Percebia as luzes se acendendo enquanto eu corria até a exaustão.
Cai exausto próximo ao rio vermelho, fora dos limites da cidade.
As árvores emitiam um leve farfalhar com suas folhas e somente a lua nos céus permitia me discernir o caminho por mim percorrido.
Minhas roupas estavam fétidas, fezes escorriam pelas pernas. Eu estava mais calmo, respirava profundamente e percebi que tudo deveria ter sido um delírio, uma histeria frenética, causada pela aparência sinistra da cidade a noite.
Caminhei em direção a água para tentar me limpar um pouco e voltar pela trilha, toquei a água do Rio e no mesmo instante senti uma pancada nas costas que me empurrou para as águas.
Fiquei desacordado por alguns segundos e acordei assustado enquanto lutava para voltar a superfície.
Gritei pedindo socorro, estava sem forças, até que uma patrulha da polícia ouviu meus gritos e tirou me quase inerte da água.
Quando recuperei a consciência no hospital, decidi que iria me limpar. Não queria ser perseguido por aquelas horrendas aberrações.
Contei tudo para o senhor delegado, tanto da minha experiência sobrenatural, quanto dos esquemas de corrupção que envolvem a assembleia estadual e o governador.
Peço somente que eu fique preso aqui para escapar daquelas malditas criaturas.

Esse foi o depoimento do homem, os documentos dele nos mostraram que era o chefe do departamento de ciência médica da universidade estadual, no seu celular encontramos as provas necessárias para levar a condenação das autoridades.
No entanto é preso informar a autoridade judicial que a testemunha acabou cometendo suicídio.
Os peritos analisaram a cena e constataram que ele praticou tal ato em um surto histérico.
Outros detentos no mesmo pavilhão disseram que ele gritava frases sem sentido, pedindo para que algo se afastasse.
No demais está em anexo todos os laudos e depoimentos feitos durante a investigação.

Dr. Marcos Almir Fernandes.
Delegado chefe da cidade de Goiás.



Corpos carbonizados

Muitos anos trabalhando no instituto médico legal não me prepararam para aquela cena e nem para o que viria depois.
Fui chamada para uma cena de crime, um assassinato, chegando ao local percebi que poucas evidências se manteriam por muito tempo ali.
Era um arcada em forma de u, escura, de aparência pestilenta do alto escorria um líquido marrom que seguia por uma canaleta até cair no esgoto central.
O policial que guarnecia o local me levou até o cadáver, enquanto caminhava pude ouvir pequenos guinchados de ratos, enquanto atravessamos aquele espaço, manchado de bolor que rescindia uma aroma horrendo.
Em toda Paris locais como aquele eram comuns, e eu torcia para que o novo prefeito conseguisse destruir todas aquelas velharias imundas.
Chegamos a uma casa de pedras antigas, parecia ser um antigo palacete, mas hoje servia como uma pensão pouco respeitável no extremo norte da cidade.
O corpo era de uma mulher, tinha um dos lados da face queimado horrivelmente. O crime tinha acontecido a pouco tempo, pois ao chegar próximo da morta, ainda era possível sentir o cheiro de carne queimada.
Sua roupa estava em trapos e somente alguns pedaços de pano, ainda inteiros, tampavam seu corpo.
Os braços tinham cicatrizes e as pontas dos dedos estavam carbonizadas, pondo a mostra os ossos dos dedos.
Os dentes estavam em pedaços, marcas no lado da face não tinha sido torrada mostravam sinais de um brutal espancamento que no outro lado estavam escondidos pela carne incinerada.
Enquanto analisava, tirava fotos, procurava documentos, sentia uma repulsa por aquele cadáver tão grande. Que piorou quando eu a vi no laboratório.
As entranhas tinham sido incineradas. Era como se ela houvesse sido incendiada de dentro para fora.
O caso tomou os jornais e dois dias depois alguns amigos reconheceram a jovem que era notícia como sendo uma brasileira de nome: Marina, que vivia numa pensão em Rouen, há vários quilômetros de Paris.
Não faziam ideia do que havia acontecido para levar a jovem a um fim tão cruel.
Por sorte ela era descuidada e deixou o celular no pequeno apartamento onde residia mais duas colegas.
Pesquisei no registro de chamadas do aparelho. Encontrei o último número, mas algo estranho ocorreu quando mandei o computador procurar o registro daquele telefone.
A máquina simplesmente pifou. Num súbito desligamento que me assustou bastante. Cai para trás e só alguns minutos depois me recompus.
Avisei meu chefe sobre o que tinha acontecido e ele receoso de ataques terroristas ou de hackers, acionou o serviço de defesa.
Passei horas escrevendo relatórios, dando depoimentos e fui proibida de deixar Paris.
Me deram duas semanas de suspensão e eu sabia que nesse meio tempo estaria sendo vigiada a todo momento pelo serviço secreto.
Na primeira noite foi quando começou, um mensagem no celular de um número anônimo me mandava esquecer aquele caso.
Fiquei apavorada e peguei um táxi até a delegacia mais próxima. Contatei um detetive que estava de plantão e este me prometeu investigar o caso.
Quando voltei para casa, a porta estava aberta e em cima da minha cama tinha um punhal e numa das paredes escrito com uma tinta negra os dizeres: Desista!
Eu gritei histericamente e isso alertou os vizinhos que vieram a mim e logo chamaram a polícia.
Em minutos minha casa estava cheia de peritos, de policiais e agentes do serviço secreto.
Fui colocada no serviço de proteção as testemunhas e por quase dois meses tive um pouco de sossego.
Passava os dias trancada em casa, lendo muito até que por fim resolvi escrever essas notas em um notebook velho, deixado pelos agentes num canto, junto a outros materiais eletrônicos antigos.
No décimo quarto dia de julho, os agentes que protegiam minha casa saíram mais cedo. Era feriado e eu sabia que só estaria protegida novamente a noite.
Todos iam a festas e eu iria ficar ali, prisioneira de um assassino que conseguiu despistar os esforços de todas as forças de segurança da França.
Pela televisão acompanhei a aparição de vários outros casos estranhos por todo o país. Alguns sensacionalistas já começavam a criar a narrativa de um culto a demônios e os associava aos imigrantes, em especial aos africanos, impulsionando o renascimento da xenofobia.
O governo já estava usando até o exército naquela série de casos, as eleições se aproximavam e todos os lados envolvidos usavam dos ocorridos como propaganda de campanha.
Naquela noite dormi cedo e acordei com um punhal cravado a poucos centímetros da minha vagina. Na janela a luz da lua brilhava a palavra: Saudade!
Entrei em pânico e sai correndo porta afora, gritando como louca, fui levada a um hospital e de lá a outra casa de segurança, dessa vez dentro de uma base.
Peguei o notebook da antiga casa. Assim que isso acabasse eu publicaria essas histórias.
Relato retirado de um computador usado pela agente Marie Le Miscret, o comboio que a levaria para fora de Paris foi completamente destruído por uma bomba plantada embaixo da rua e acionada no exato momento que passaram por ali.
A mochila foi lançada alguns metros para o lado e ficou intacta próximo ao meio fio.
Os corpos não puderam ser identificados, incinerados e despedaçados de tal modo que pareciam apenas uma massa de carne em meio ao metal retorcido.

Howard Philips – Perito chefe da área de informática.
Sessão 4 – Departamento de assuntos secretos.


O diário de Carlos Alquevarado.



Semanas atrás recebi uma carta do meu avô, um antiquário, que vendia e comprava arte em todo Brasil e hoje fiquei sabendo da sua morte, na catacumba da velha igreja de Nossa senhora do Rosário, na cidade de Goiás.
Transcrevo a nesse e-mail para o senhor delegado, com o interesse de ajudar lhe nas investigações.
Não irei pessoalmente ao Brasil, pois pretendo cumprir a vontade dele e por temer que o assassino ainda esteja a solta.
Marina Augusto Silva


Na cidade de Cruz da Fortaleza existem poucos lugares onde se pode conseguir livros, um deles é o velho antiquário do senhor Alquevarado, um homem velho, de aparência austera e arrogante.
Minha avó me contou que aquela família tinha chegado a cidade anos atrás, sempre encerrada em mistérios imemoriais.
Os mais supersticiosos diziam serem eles feiticeiros, que tinham fugido da Espanha para escapar da inquisição.
Mas eu não acreditava nisso, pensava serem bobagens de velhos, quando vi uma placa na porta do antiquário dizendo que precisavam de ajudante, aceitei a vaga.
Era o final dos anos 80 e eu tinha 15 anos, minha família passava dificuldades e eu resolvi aceitar aquele emprego.
Trabalhava com afinco, recebendo 100 reais por mês e pouco a pouco fui ficando amigo da filha do meu patrão, uma criança de 5 anos chamada Maria.
Ela gostava de histórias e como eu passava quase o dia todo lendo devido a ausência de clientes, contava lhe as narrativas das mil e uma noites.
Gostava de vê – la narrar as histórias para o pai, quando este lhe pegava no colo. O homem parecia ficar feliz com isso e muitas vezes me dava notas menores como gratificação pelas histórias que eu contava.
Minha memória fraqueja pela idade e não me lembro o nome dele. Muitos episódios menores ocorreram durante o tempo que estive empregado ali, caixas que sumiam, livros antigos que chegavam todo dia 6 de cada mês.
Eu lia alguns desses, mas não entendia nada, eram todos em idiomas esquecidos, com símbolos, desenhos e fórmulas bem antigos. Até tentei pesquisar sobre alguns daqueles desenhos em enciclopédias na biblioteca da cidade, mas nenhuma delas tinha nada a respeito.
Até o dia em que eu fui ordenado a limpar a loja, tirando a poeira de tudo e depois eu estaria liberado. Estranhei aquilo, mas não discuti, comecei a limpeza dos itens da pequena loja pela manhã e na hora do almoço já estava tudo terminado.
Bati na porta do escritório do senhor Alquevarado, ele abriu e com olhar assustado me entregou um pequeno livro como presente.
Não sabia que aquela seria a última vez que eu o veria.
A noite, um guarda encontrou a porta da loja acesa durante a ronda, entrou e encontrou os corpos do homem e da filha carbonizados.
A esposa, que vivia reclusa dada a tuberculose morreu pelo choque da notícia. E por mais incrível que apareça eu ganhei a loja e um legado que até hoje me assombra a noite.
A lenda do local se adensou e até hoje tem pessoas que não entram na pequena porta próxima a velha catedral.
Eu enterrei o velho livro junto ao corpo de meu antigo patrão. Fiz isso depois de ler que ele e seus antepassados tinham trazido a terra uma antiga e repulsiva criatura, numa mansão velha na cidade de Pirenopólis, um antigo demônio noturno, e de como tinham se tornado lacaios dessa criatura, fornecendo lhe tomos antigos, comprados de mercadores amedrontados, para que o horrendo ser estudasse artes místicas.
As lendas eram verdadeiras, temo só de imaginar que horrores tenebrosos habitam essa maldita casa no fim de uma rua pouco movimentada. Uma construção de pedra reforçada que ainda hoje existe e que por direito me pertence, mas eu jamais pisarei ali dentro, os horrores descritos no velho livro me atemorizam até hoje.
Escrevo essas memórias para avisar a você, Marina, a herança que eu herdei é sua, e por isso não quero vê – la em perigo quando eu partir.
Você foi para a Europa com uma bolsa de estudos estudar arte, fique por ai! Jamais retorne ao Brasil, nunca pise novamente nesse país!
Posso estar louco, mas há poucos dias recebi uma carta, escrita numa tinta pegajosa, de um vermelho vivo quase aberrante.
Os dizeres da carta me avisavam que Nephesh tinha se libertado e que eu teria de cumprir meu trato e dar lhe mais livros ou morrer.
Não sei o que fazer, pretendo fugir dessa horrível criatura, ela não vai me matar, ela não vai me matar!
Adeus, e não venha nem mesmo ao meu funeral! Te amo demais para te ver morrer.

Augusto Silva Campos”

Sons da noite

Caminhar a noite é uma experiência que sempre fascina. Os sons a noite são mais aguçados. É como se a ausência de luz tornasse tudo mais son...