domingo, 25 de novembro de 2018

Impossível

"Era mais um dia comum no instituto médico legal, pessoas mortas entrando, parentes reconhecendo e cadáveres sendo abertos.
Não havia nada de novo ali. Éramos apenas quatro períodos para uma região inteira. Seis cidades do interior passavam por ali.
Não tínhamos equipamento e não raras vezes ficávamos ali até depois do expediente por pena de uma mãe enlutada que não queria esperar até o dia seguinte para enterrar seu filho.
Era um trabalho triste, onde até o ar tinha cheiro de morte. Não raras vezes eu tinha pesadelos com os mortos. Sonhava com eles me atacando, me segurando e depois me abrindo. Era terrível, acordava com a mandíbula tensa, os pulsos fechados e todo corpo dolorido.
Passei a usar remédios para dormir, após consultar um psiquiatra, caso não funcionasse eu iria ter de tomar mais medicamentos.
Fiquei dois dias dopado a tal ponto que não me lembro sequer se eu estivesse no meu trabalho.
O mundo era apenas um pesadelo psicodélico terrível, onde meus medos me atacavam de todas as formas possíveis.
Mas mesmo assim não deixei de ir trabalhar. Era a minha noite de escala, tomei um banho, meu atestado acabaria em uma semana. Porém eu não me importei. O hábito faz o monge, e eu segui a rotina que minha memória estava acostumada.
O porteiro do prédio, abriu a contra gosto a porta e me deixou entrar. Era um ex policial, que tinha início de Parkinson, conseguiu um emprego por ser amigo do diretor da unidade, como forma de ajudar a pagar as despesas, visto que a aposentadoria não dava para nada.
Por volta das duas da manhã, eu estava com muita dor, saí no meio de uma autópsia e fui a cozinha fazer um pouco de café. Era tradição entre todos ali, fazer uma larga quantidade de café, de modo a poderem trabalhar com mais facilidade em meio aquele caos.
Quando voltei a mesa de autópsia, o corpo não estava mais lá.
Fiquei aterrorizado, minhas pernas tremeram ao olhar no chão e ver o sangue por todo lado. Era como se meus pesadelos tivessem acordado.
Cai no chão e não sei o que aconteceu. Lembro de ouvir a voz do vigia, tentava me acalmar. Mas por um instante minha mente alucinou e eu vi a moça com o peito aberto ali na minha frente. 
Eu dei um soco na alucinação e quando ela caiu no chão, subi em cima dela e a enforquei até ter certeza de sua morte.
Quando me levantei de cima do morto imerso numa explosão de felicidade, grito de puro pavor, minha culpa me estraçalha e por um impulso e pego a arma dele e dou um tiro nos miolos.
Mas a arma falha das três primeiras vezes. Na quarta eu completo meu intento, mas isso apenas me deixa paralisado da cintura para baixo.
Eu mereço estar nessa ala do manicômio, matei um homem, ignorei meu atestado e fiz tudo isso no mais puro estado de torpor.
Mas o que me deixa mais impressionado é lembrar do relatório médico parado na minha frente, e ter a total certeza que havia uma mulher naquela madrugada. Uma mulher que misteriosamente desapareceu."
O paciente não tem mais sequelas mentais depois dos acontecimentos que o trouxeram até aqui.
Creio que em breve estará apto para viver novamente em sociedade.
Não o libero ainda por medo dele acabar se matando, toda essa alucinação impossível se mistura a culpa do ato hediondo por ele praticado e isso poderia acabar em suicídio.

Adendo.
Fomos forçados a libera-lo, o advogado dele conseguiu reverter sua sentença. E por fim, minhas piores suspeitas se confirmaram.
Ele se jogou na linha do trem.
Dr Abdul Alhazred.
São Paulo, 30 de dezembro de 2005

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Caminhar a noite é uma experiência que sempre fascina. Os sons a noite são mais aguçados. É como se a ausência de luz tornasse tudo mais son...