quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Simargl

Londres. 02/01/1992.

Para minha pequena Sara.

Quando você ler essa carta, eu estarei morto. Dei instruções específicas para que você só a receba quando eu me for.
Meu pequeno bebê, hoje você deve ter dez anos. Eu não passei nenhum tempo com você.
Saio da vida com a culpa de um devotado, que percebeu tarde demais que sua causa era na verdade mera vaidade.
Ganhei notoriedade na universidade como pesquisador de doenças mentais.
Me afastei de sua mãe tão logo ela me disse que você estava por nascer.
Confesso que te amaldiçoei, disse a ela que eu não queria ter uma família e ela saiu em prantos.
Ainda tenho pesadelos com aquele dia.
Sai da universidade doutorado e fui a procura de viajar. Meus pais tinham me deixado uma herança e eu vaguei por todo lado a procura de entender melhor as doenças.
Nesse meio tempo escrevi livros, soube só recentemente que meu advogado fez com que eu não lhe pagasse nada.
Me senti péssimo, quando vi as diversas cartas e emails que sua mãe me mandou.
No último deles, ela me amaldiçoou com uma vida bem curta. 
Quem diria que ela teria razão. 
Vou contar o que me levou a morte.
Eu tinha ido morar na Rússia, próximo a nascente do rio Volga.
Trabalhava numa pesquisa com doentes mentais em um sanatório isolado, no norte do país.
Era um local lúgubre, terrivelmente fechado. Demorava horas, indo por estradas de terra parcialmente congeladas.
Os doentes no local viviam com doenças pulmonares constantemente e eram tratados ali mesmo, apenas sendo separados dos demais.
A taxa de suicídios era muito alta. Comecei a questionar alguns funcionários, conversar com alguns doentes e assim pouco a pouco minha presença deixou de ser agradável e se tornou mal vista.
Até chegar um ponto onde eu fui mandado embora dali, quando numa noite fria questionei um dos enfermeiros por que a calefação dos pacientes tinha sido desligada e ele me mandou voltar para meu quarto.
Naquela madrugada tive uma longa discussão com o diretor do hospital. Fui jogado fora dali junto com meus pertences.
Estava uma noite fria e eu tive de caminhar por algumas horas com o vento cortando minha face.
Quando voltei a estrada principal, um caminhão parou e me deu carona até o posto mais próximo.
Comi uma refeição pequena, liguei para casa e oito horas depois um carro de minha família me levou de volta para casa.
Descansei por algumas horas e depois escrevi um artigo nervoso e mandei para o Pravda.
Acusava o hospital de vários crimes. O caso virou um escândalo e rapidamente as autoridades fecharam o hospital psiquiátrico.
Muitos dos doentes foram mostrados na televisão, seu estado esquelético e apático chocou a todos e houve uma grande mobilização em prol da causa dos doentes mentais.
Passaram se vários meses e eu até esqueci do artigo e de tudo que vivi ali. Meu vício pela fama se ergueu novamente, eu ainda era uma celebridade na internet e gostava cada vez mais disso.
 Ir a programas de entrevista se tornou meu maior objetivo, amava os holofotes e quando apareceu uma carta ameaçadora dizendo que eu seria morto na noite de Simargl.
Fiz um estardalhaço, contratei seguranças e consegui uma coletiva dizendo que eu não me amedrontaria jamais. 
Acusei as autoridades de quererem me calar e entre berros de delírio megalomaníaco disse que iria concorrer a presidência daquele país.
Fui dormir aquela noite feliz e nem dei bola quando um dos empregados desmaiou ao ver no gramado da frente diversas pegadas, pareciam ser de lobo, no entanto, eram maiores e tinham as beiradas queimadas, como se a grama tivesse sido incendiada.
Ri daquilo e mandei reforçar a segurança. 
Considerei apenas que quem queria me amedrontar realmente estava se esforçando.
Passei o resto daquele dia no computador, escrevia furiosamente discursos que usaria em minha campanha. As vezes me empolgava demais e os bradava para as paredes.
Os empregados devem ter me achado louco ali naquele momento de empolgação.
Pena que nenhum deles sobreviveu.
Lembro de ter ido dormir as 2 da manhã, tive um sono pesado e só acordei quando um homem, vestindo uma fantasia de lobo parecia estar em cima de mim.
Tentei lutar, me debater, mas ele me imobilizou e injetou no meu pescoço um líquido com uma seringa.
Os jornais na manhã seguinte mostraram minha casa sendo invadida por uma turba de agentes federais, policiais e jornalistas.
Os empregados e a equipe de segurança foram degolados.
Por todo lado haviam pegadas de lobo, repletas de barro e sangue.
Pelo menos foi isso que me disseram, fiquei três dias em coma e desde então minha saúde só tem piorado.
A morte me espera. Fugi da Rússia, vim para Londres.
Os médicos dizem que eu fui envenenado por radiação. Meu ego enfim me levou ao final trágico que todos me diziam que levaria.
Não quero partir sem me redimir com minha namorada dos tempos de universidade, a mulher a quem eu amei e fui amado.
A mulher a quem eu abandonei em prol de um delírio.
No fim é irônico que a lenda de um cão que está preso e devoraria o universo caso fosse solto tenha sido usada para encobrir meu assassinato.
Esse cão é meu vício por grandeza.
Não espero que me perdoe. Apenas saiba que horas antes do fim, seu pai tentou se redimir.
Viva e não seja como eu. O segredo do sucesso é acordar, quem necessita de algo é escravo disso.

Seu pai.

Daniel Mac'namar

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