terça-feira, 27 de novembro de 2018

Sumiços

Era uma noite fria. Eu e mais dois homens íamos assaltar um mausoléu no antigo cemitério da cidade.
Estava escuro e o vento cortava enquanto aguardava meus parceiros, fumava um cigarro calmamente.
Naquela hora estava pensando no ouro que um dos fundadores da cidade tinha mandado enterrar junto de si ali naquele local.
Meus parceiros chegaram, arrombamos rapidamente o portão. Naquela noite não tinha vigia. Estava tudo escuro. Pegamos as lanternas e nos dividimos para procurar a entrada do mausoléu no centro exato daquele local enorme.
Eu fui para a direita, meu outro parceiro para a esquerda e o terceiro foi para o centro.
Era possível ouvir meus passos, não havia nenhum som e por alguns minutos continuou assim até que eu escutei um grito.
Era um pedido de socorro, muito alto e desesperado. Repetiu se por três vezes e então parou.
Estava completamente perdido, no meio das lápides.
Me sentei em uma delas para descansar e cai num torpor estranho. Sonhei que era carregado por um lobo negro que repetia constantemente: Não volte aqui!
Quando me dei conta estava noite alta e eu estava próximo ao portão de saída do cemitério.
Ao meu lado estavam o relógio de um dos meus parceiros e o anel do outro.
Não pensei duas vezes, corri o máximo que pude. E por vinte anos guardei essa história.
Quando meu neto me contou que um grupo de crianças iria pular o muro para passar a noite ali no antigo cemitério como prova de coragem no colégio fiquei receoso de acontecer algo de ruim com elas.
Por isso tentei impedi-las, fiquei com o carro parado por horas na entrada lateral, onde supus que eles iriam tentar entrar. 
Não sabia, no entanto, que eles haviam entrado por outro ponto.
Passei várias horas esperando, estava quase pensando em ir embora, quando veio na minha mente o mesmo som, o uivo gutural que mandava as crianças irem embora dali.
Minutos depois ouvi gritos, sem pensar muito, liguei o carro e bati contra o portão, encontrei um dos meninos desacordado.
Gritei pedindo socorro e um lixeiro que passava ao longe veio e me segurou a criança enquanto eu rapidamente lhe contei a história e sai a procura dos outros.
Meu coração pulsava rápido, o fôlego por várias vezes faltou e eu pensei que iria desmaiar.
Por todo lado havia apenas granito com lodo. Não era possível se direcionar ali dentro, o local era amaldiçoado.
Eu gritava a plenos pulmões por ajuda sem sucesso. Lutava contra o cansaço e torcia para que ninguém morresse naquela noite.
Não sei quanto tempo se passou até eu encontrar outra criança.
Estava em estado de pânico, me atacou enquanto gritava de puro horror.
A mente do coitado nunca mais foi a mesma. Precisou ser internado num hospital psiquiátrico, onde até hoje não se recuperou.
As outras crianças nunca mais foram encontradas. Por um tempo a polícia me considerou culpado, acabei sendo indiciado até, mas o processo foi extinto por falta de provas.
Meses depois uma menina sumiu de casa e toda a população ficou apavorada.
O surto de medo se tornou em histeria quando encontraram as roupas dela, ensanguentadas, na porta do antigo cemitério.

O local foi invadido por uma turba ensandecida que atacou tudo que viram pela frente, inclusive o vigia do local, um pobre homem magro como a noite que estava ardendo em febre.
Foi incendiado vivo pela multidão e enquanto ardia muitos juram tê-lo ouvido rosnar como um cão.
Eu me mudei dali após o acontecido. Adquiri a síndrome do pânico e até o menor sussurro a noite me deixava apavorado.
Cheguei numa nova cidade a espera que tudo mudasse. Saia para passear todas as noites numa pequena praça, logo fiz amigos e estava indo ao clube da terceira idade, dançar e jogar conversa fora.
Toda essa paz, no entanto, durou um mês. 
No primeiro dia de janeiro de 2004, cheguei em casa e a porta principal estava repleta de marcas, como se um lobo tivesse tentado entrar ali a força. A entrada cheirava a enxofre puro.
Eu passei mal de tanto medo e tive um infarto. Fiquei semanas internado e meu pânico se apossou de mim.
Na última sexta vi um homem no hospital que parecia com o vigia do antigo cemitério. Ele me olhou e riu, e quando o fez pude notar a dentição igual a de um cão.
Fugi do hospital rapidamente, passei em casa, arrumei a mudança, iria partir numa fuga alucinada.
Mas minha condição era frágil e eu acabei demorando demais.
Ouvi um grande rosnado lá fora e percebi que já era noite. Corri para um quarto no andar superior. Escrevo essas palavras enquanto ouço o arrombar a porta.
Ele não vai me pegar com vida!


Relato escrito pelo professor Alex Pereira, de sessenta e dois anos, pouco antes de se matar.
Parte do relatório policial.
Não foram encontrados sinais de arrombamento e nenhum dos vizinhos ouviu nenhum barulho a noite.

O caso foi tratado como delírio paranoico.
 Delegado Alberto dias
02/01/2004

O verdadeiro lar.

Caminhei pela rodovia a noite toda. Meus pés doem. Minhas mãos já não aguentam mais.
Estou atordoado pelo que fiz. Não posso acreditar que fui capaz de matar.
A adrenalina percorre o meu corpo e é como se eu visse tudo em câmera lenta.
Ouço motoristas me xingando, sinto o vento frio na pele, vejo algumas árvores bem a frente.
Abandonei meu carro a muito tempo. Nem me lembro que direção tomei. Só quero fugir. Seguir adiante até ser preso ou me matar de culpa.
Não sei se vale a pena continuar vivo, depois de dois dias caminhando, sinto dor em cada parte do meu corpo.
Não como, nem bebo. Estou alucinando com tudo que fiz.
A briga, os gritos, o empurrão e o trágico final. Tudo voltava para me punir.
Quando olhei para a ponte a minha frente, não pensava em nada além de dar fim naquela insanidade.
A adrenalina, o impulso, as vertigens, tudo unido me acompanhou nos segundos até o abraço a terra que me tirou as pernas.
Os médicos chegaram tempos depois, me encontraram numa poça de vômito e sangue, disseram que eu ria alucinado dizendo:
_ Eu escapei, pode vir me buscar! Sou mais forte que você!
Acabei internado no hospício. Onde estou há uns vinte anos.
Minha família me abandonou, não tenho amigos lá fora. Agora estão me mandando para fora, dizem que estou são.
A contragosto vejo se aproximar a hora de sair do meu mundo de volta a realidade.
Ser atormentado pelas visões é meu maior medo. Gosto de dormir em paz todos os dias. E só tenho isso aqui!
Uma tia vem me buscar. É uma senhora respeitável com uma casa limpa, a única parente que me quis.
De fato não deve ser agradável ter em sua casa alguém com meu diagnóstico.
Na primeira noite ali sou atacado pelas vozes, a imagem da minha culpa volta.
Eu não grito. Acordo e escrevo essas últimas palavras e termino apenas dizendo: Não se deve tirar um homem de seu verdadeiro lar!
Carta encontrada ao lado do corpo de Raul Mendes, esquizofrênico encontrado morto ao lado de duas caixas de remédios tarja preta.
Sua tia, uma ex professora que mora num sítio a poucos quilômetros da cidade chamou a polícia.
Ela afirmou que naquela noite tomou um remédio para dormir e que não ouviu nada.
Apenas soube que estava morto na manhã seguinte quando foi chamar o sobrinho para tomar café.
O caso foi encerrado como suicídio.

Tenente Fernando Santos.
Relatório final do caso 1345.
1/01/2001

Sons da noite

Caminhar a noite é uma experiência que sempre fascina. Os sons a noite são mais aguçados. É como se a ausência de luz tornasse tudo mais son...