quarta-feira, 28 de novembro de 2018

O que é real?

São Paulo 20/12/2001

Para meu amigo Lucílio 

Não era conhecido por minhas crenças, na verdade, até bem pouco tempo atrás era um cético completo que ria de toda essa ideia de espiritualidade.
Acostumei me a dizer: A ciência um dia ainda iria suplantar a todos os mitos e livre desse mal, as pessoas iriam entender a vida em essência.
Você mesmo em algumas ocasiões me dizia para não ser tão radical em meu ceticismo, repetia incansáveis vezes que há mais coisas do que a mera lógica.
Escrevo esta carta para lhe dizer que estava certo, e caso saiba da minha morte, entenderá por meio destas mal fadadas linhas o que de fato aconteceu comigo.
Como bem sabe passei em um concurso e fui lecionar numa pequena cidade do interior.
Era um local pequeno, onde os cheiros ainda existem, pães, flores, perfumes. Não há somente fuligem e fumaça intoxicando os pulmões.
O povo era me indiferente, cordiais, porém distantes. Me acostumei com tudo e com meu salário podia manter uma vida saudável, tanto física quanto economicamente. Algo que até então eu jamais tinha pensado, visto que sou um consumista inveterado, como você bem sabe.
Mas tudo mudou desde o último dia das bruxas. Todos na cidade pareciam temer tanto aquele dia que não havia ninguém na praça a noite, de minha janela numa casa bem no centro podia ver que até mesmo os mais ávidos comerciantes fecharam suas portas tão logo a noite chegou.
Fiquei curioso com aquilo e comecei a fazer algumas perguntas informais. Ninguém quis responder e alguns me mandaram não ser bisbilhoteiro. 
Mas como bem sabe, obedecer nunca foi uma de minhas maiores características e um acaso da vida me permitiu entender melhor o que se passava.
Encontrei um bêbado conhecido do local, seu nome era Ivan, e em troca de duas doses no bar local me contou toda a história.
A cidade tinha sido construída em cima de um cemitério indígena e todos evitavam sair a noite desde o dia das bruxas até a noite do dia 21 de dezembro por medo do portão do inferno.
Segundo a lenda, um pajé amaldiçoou os primeiros colonos daquelas terras, pouco antes de morrer disse: "Que os seus deuses mandem para essa terra todo o medo!"
Ri abertamente da história, algo que ofendeu Ivan que resolveu não me contar mais nada.
No entanto segui as pistas dadas por ele e na próxima noite estava eu no bairro antigo. Tinha medo de ser assaltado.
Queria provar se havia algo sobrenatural ali. Tinha apenas uma caneta e um papel, queria narrar meu encontro ali ao vivo e mandar para um jornal junto de um texto onde zombaria das crendices do povo interiorano.
Era noite alta e nada acontecia. Estava feliz vendo me como um superior. Quando ao longe ouvi um uivo.
Pela primeira vez naquela noite cedi a minha imaginação e meu coração começou a pulsar mais rápido. Registrei as horas: Eram 3 da manhã em ponto. A lua cheia estava alta, de repente comecei a perceber que o frio havia aumentado.
Desisti da ideia daquilo quando escutei o segundo uivo dez minutos depois, não era nada que se ensine nas aulas de biologia, parecia que o som não entrava pelos meus ouvidos, mas era sentido por todo meu corpo.
Andava de volta para casa com a mente repleta de xingamentos a mim mesmo por ser tão covarde, quando me afastei alguns passos, eu vi um lobo negro.
Era tão grande quanto um boi adulto. Tinha um pelo longo avermelhado, olhos completamente negros.
Podia ver sua respiração no ar frio que estava fazendo. Tudo parecia congelar e eu me sentia morto.
Urina escorria por minhas calças e eu sequer murmurei uma palavra sequer.
Era a presa dos filmes de documentários na África, aterrorizado demais para me mexer.
Fui salvo por um padre que no último instante, apareceu e jogou sobre mim um balde de água.
Ao sentir o cheiro daquele líquido a criatura se amedrontou e saiu ganindo até sumir.
Nesse instante eu desmaiei e acordei na minha casa no outro dia.
Havia apenas um bilhete ao meu lado: Marcaste sua vida para sempre. Sua sina virá te buscar até o solstício de verão. Adeus.
Tomei banho, na tentativa de acalmar meus nervos. Mas nem por um instante parei de tremer. 
Minha voz aquele dia na aula parecia não querer sair. As palavras me fugiam como loucas e eu acabei dispensando a última turma mais cedo para sair da escola antes que ficasse escuro.
Não havia contado a ninguém o que acontecerá durante todo dia. Quando escutei a conversa de duas senhoras dizendo:
"_Pobre padre Pedro. Morreu estraçalhado perto da paróquia perto das quatro horas da manhã".
Sai correndo assustado e fui em direção da igreja. Um pequeno enterro estava presente e no momento que eu entrei um homem bem velho, a quem eu nunca tinha visto antes, começou a me acusar.
"+ Eis ai o assassino arrogante! De que adianta tua ciência? Não é tu mais sábio do que nós?"
Seu rosto parecia a máscara de um Torquemada antigo. Corri dali rapidamente, comecei a juntar minhas coisas. Na manhã seguinte iria embora dali.
Voltei para a casa de minha mãe no dia seguinte. Deixei uma vida para trás. Todos ficaram espantados ao me ver de volta a capital.
Me arrisquei até a ir naquela noite a uma pizzaria sozinho, precisava relaxar meus nervos.
Quando voltei para casa, a porta estava arrombada e lá dentro os dizeres:
_" Você é meu!"
A polícia até tentou me oferecer proteção. Mas eu me internei num hospício. O lugar era uma fortaleza, os remédios me permitiram dormir.
Mas numa noite, eu tive um pesadelo e a criatura apareceu novamente, dessa vez não era mais vermelho e sim branco como a neve.
Em meu sonho zombou de mim, disse muitas coisas e por fim falou que em breve eu iria ser carregado para o inferno por minha arrogância.
Termino dizendo que a vida me é um fardo terrível desde que passo ela em companhia constante do medo.
Essa carta só chega a ti após eu subornar um enfermeiro com o segredo da senha do armário de remédios, algo que eu descobri prestando atenção ao doutor que me trata, um bom senhor, completamente desatento.
Um abraço desse que aprendeu tarde demais a ser humilde.

Daniel 


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