segunda-feira, 10 de junho de 2019

Dominado pela culpa



Não havia verdades em nada que ela me disse.
Estava no carro em alta velocidade, queria fugir da cena que vi. Ela e outro cara juntos em uma cama de motel barato.
Nem nos meus piores pesadelos eu imaginava aquilo. Queria somente fugir! Os sentimentos no meu peito eram ódio puro. Não sabia o que pensar. Estava indo para casa, ia por fogo em tudo que era dela. As sirenes atrás de mim pareciam um barulho distante.
Nem percebi quantas pessoas atropelei. Meu velocímetro marcava 240 e eu queria pisar mais. Somente a adrenalina dava algum conforto e evitava a dor.
Numa curva bem fechada eu perdi o controle do carro e ali naqueles poucos instantes quando eu despencava ladeira abaixo senti um alívio louco, a certeza que eu não iria morrer.
Os bombeiros demoraram muito para me tirar dos escombros. Eu estava eufórico. A adrenalina me dava uma força absurda, era como se eu fosse um super-herói.
Sai dos destroços e fui levado ao hospital algemado. Os homens estavam me acusando de múltiplos assassinatos, de crimes de trânsito e outros tantos crimes.
O policial que foi comigo ao hospital num determinado momento começou a me perguntar por que eu tinha matado minha namorada num motel do outro lado da cidade?
Eu olhei para ele sem entender nada. Não me lembrava de ter feito nada daquilo. Neguei com veemência que tinha feito aquilo e então o homem tirou um celular do bolso e pôs bem em minha frente. Era um vídeo que tinha sido postado nas redes sociais logo que começou a perseguição a mim.
Nele eu espancava um homem com uma barra de ferro e depois a enfiava em seu coração e corria atrás de uma mulher, derrubava no chão e com as mãos nuas a esganava e depois que ela desmaiou coloquei a no rumo da roda do carro e dei ré várias vezes deixando para trás apenas um corpo sem crânio.
Eu fiquei em choque depois de ver aquelas cenas. Não conseguia lembrar nada daquilo. Senti-me um monstro.
Meu advogado me tirou da cadeia e me pôs em um sanatório judicial, fiquei ali sendo maltratado por um bom tempo e sai com a certeza de que eu merecia ser mais punido.
Escrevo isso para contar meu lado da história. Voltei para meu apartamento, escrevi essas palavras num papel. E agora estou pensando em como vou terminar minha vida.
Sempre quis reviver a adrenalina daquela perseguição. A janela está aberta. Um último pulo seria maravilhoso. Adeus, e sim meu último ato é motivado pela culpa, a culpa por ter sido um monstro mesmo que não conseguisse lembrar.

Coragem para ajudar

Era difícil viver naquele bairro. Gangues dominavam o local.  Havia tiroteios. A escola era uma zona de guerra.  Eu não tinha amigos e era o alvo preferido dos idiotas.
Meu pai era um bêbado que me batia e em minha mãe. Meu irmão estava na cadeia e minha irmã tinha fugido de casa.
Eu tinha tudo para me dar mal e ir para o submundo. Parecia que meu destino estava selado.
Porém eu me mantinha firme por uma promessa que fiz ao meu avô antes dele morrer que eu não seria o que os outros queriam. Eu teria o controle da minha vida.
E em parte eu estava me mantendo bem nisso. Fugindo até da minha sombra.
Eu era um grilo contra leões.  Não era raro eu tirar as melhores notas e no mesmo dia não era raro ser espancado pelos demais como "prêmio".
Um dia eu voltava para casa e um grupo de moleques decidiu se divertir.  Me cercaram e me mandaram correr depois de mostrarem na cintura terem armas.
Sai disparado e eles vieram atrás.  Tentei gritar mas ninguém me deu atenção.  Num beco eles começaram a atirar. Meu medo quase dominou. E eu pulei o muro de um prédio abandonado.
Era um futuro hospital prometido pelo prefeito. As obras tinham parado quando descobriram a corrupção envolvida.
Eu corri para me esconder em qualquer buraco. No fundo eu sabia que estava acabado e iria morrer ali. Mas algo dentro de mim me disse para continuar.  A imagem do meu avô numa cama de hospital me veio a mente e eu me esgueirei até o que iria ser a sala cirúrgica.
Ali encontrei um velho dormindo calmamente ao lado de um pequeno cachorro.
Era um senhor sujo e fedido. O cachorrinho mal parecia ter cor tamanha a sujeira em que vivia.
Tentei acorda lo mas ele mal se mexia.
Pensei que estivesse chapado ou pior desmaiado.
Sabia que iriam tentar mata lo. Moleques como aqueles não tinham piedade.
Decidi deixar de fugir e lutar.
Fechei a porta onde o velho estava e fui até o depósito.  Os caras que queriam me matar estavam dando tiros a esmo. Queriam me assustar antes de me matar.
Confesso que eu não sabia o por que de não estar apavorado. Mas algo em mim queria proteger aquele senhor e seu cachorro.
Peguei um bisturi e amarrei na ponta de um arame.
Vi vários galões de oxigênio enferrujados num canto. Por sorte estavam cheios.  Abri os e os rolei para o corredor. O gás os fez rolar para o outro lado. O barulho chamou a atenção dos caras que vieram como cachorros na caça.
Eram idiotas e quando me viram começaram a atirar.  O oxigênio médico é altamente inflamável.  E eles começaram um incêndio que os fritou. Começaram a gritar como loucos e eu corri até a sala do senhor e do cachorrinho.  Arrastei até uma maca e juntamente com o cachorro descemos para o segundo andar pela rampa da saída de incêndio. Eu guiava com cuidado e por duas vezes quase acabei esmagado.  Mas não queria correr. Algo maior que eu me impedia de fugir. Ajudei o senhor e o cachorro a saírem. Tive o cuidado de conseguir que o dono de um pequeno restaurante lhe desse comida.
O prédio mal construído desabou antes do incêndio se espalhar.
Os corpos dos caras que queriam me matar não foram encontrados e eu me tornei um herói.
Havia recuperado minha coragem e pela primeira vez as pessoas me viram como alguém digno. O garoto magrelo tinha salvado um homem. Nessa hora inventei uma história de ter ouvido gritos e ido ajudar.  A mentira me pareceu mais sensata do que contar os fatos reais.
No entanto ao voltar para casa meu pai estava bêbado e minha mãe desacordada no sofá.
Ele apenas olhou para mim e riu dizendo:
_Vai para o seu quarto. Já,  já é sua vez de receber disciplina!
Eu fiquei parado e disse não!
Ele avançou para cima de mim e me jogou contra a estante. Bati a cabeça e perdi a consciência.  Sonhei com meu avô sorrindo para mim dizendo:
_ Estou orgulhoso de você!
Recobrei a consciência horas depois. Meu pai tinha tido um ataque do coração e morrerá.
Uma vizinha trouxe a mim e minha mãe ao hospital.
Meu medo acabará.  Minha vida iria mudar para sempre. Nunca me esquecerei daquele mendigo e seu cachorro.
Hoje eu sou um líder comunitário. Sou respeitado por todos e uma das poucas vozes que fala sem medo contra o crime sou eu.
Muitos me dizem que eu posso morrer por ser tão corajoso.
Eles já estão mortos por terem medo. Eu sou o senhor da minha vida! E isso é tudo que um homem necessita.
Essa história é a origem de um dos maiores nomes contra a violência do país e apareceu em um documentário ganhador de vários prêmios internacionais além de ser um exemplo para outros tantos líderes que não se calam diante do mal.

Salvador anônimo

Eu havia passado a noite toda num bar.
Tinha ido beber depois de terminar meu casamento.
Me embebedei muito e perdi boa parte da noite. Quando estava saindo dei de cara com um grupo de homens.
Consegui correr deles e entrei no meu carro. Dei a partida antes de um dos homens me arrancar de dentro do veículo.
Estava muito bêbada para dirigir com alguma proficiência e bati em vários carros e por fim me acidentei quando bati numa árvore.
A visão estava turva. A cabeça doía muito.  Vi os homens que me perseguiram saírem do carro e virem me pegar. Sabia que iria morrer. Nada adiantaria. Meus maiores pesadelos passaram pela minha mente dolorida e em pânico total.
Quando vi aparecer um mendigo gritando umas palavras estranhas.  Pareciam urros guturais animalescos.
Os homens riram dele e o ameaçaram mas ele continuou urrando e gesticulando.
Nessa hora eu perdi a consciência. Voltei a mim no hospital. Tinha sido deixada ali horas atrás.
Na TV passava um grande incêndio na estrada envolvendo três carros.
Quatro homens foram encontrados carbonizados.
Eu fiquei assustada. Mas decidi me calar. Não queria ser envolvida naquilo. Não queria que soubessem o que eu estava fazendo no bar aquela noite.
Conhecia bem a hipocrisia da sociedade que logo iria me chamar de vagabunda e coisas do tipo.
Além disso minha família iria me crucificar.  Por isso me calei perante a todos.  Fingir ter amnésia e voltei para casa depois de dois dias.
Muitas pessoas ficaram preocupadas e eu menti dizendo que tinha tido um mau súbito e um vizinho me ajudou a ir ao hospital.
Tudo corria bem.  Semanas depois eu saindo do trabalho vi o velho mendigo. Pensei ser alucinação. Pensei que eu estava maluca.  Parei e lhe dei todo o dinheiro que tinha.
O homem apenas sorriu, mal tinha dentes, era sujo e fedido. Mas eu me senti tão bem diante dele que não queria sair dali.
Deixei o e fui para casa. Não perguntei seu nome e nem o agradeci direito. Mas sei que aquele homem é especial. Por trás de toda máscara de sujeira existe alguém especialmente bondoso.
Depois desse incidente larguei a bebida e entrei para um grupo de apoio.  Todo bem que recebemos devemos repassar.
Nunca mais vi aquele salvador anônimo.  Queria poder agradece lo. Mas sei que ele está por ai ajudando as pessoas.

O campeão do fliperama

Eu havia conseguido um trabalho de zelador num antigo parque próximo a cidade.
Eu passava as noites limpando o chão e cuidando das máquinas marcadas para manutenção.
Era um serviço tranquilo, não tinha ninguém ali comigo e na maior parte do tempo minha única companhia era um velho cachorro vira-lata que ficava próximo da entrada. Eu o alimentava e colocava o para dentro. Sentia pena do pobre animal ficar ali no frio.
Era um cachorro velho, seus olhos cansados pareciam ter uma profundidade estranha. Um dia ao chegar no trabalho vi o pobre cachorro ferido na altura do abdômen.
Era uma ferida feia. Peguei o e corri para o veterinário.  Nem pensei em como iria pagar por aquilo.
Por sorte o hospital veterinário era 24 hrs. E quando eu cheguei com o animal o levaram para a cirurgia.
Contei toda a história para a atendente. Ela se condoeu de mim e disse que iria tentar me ajudar quanto aos custos.
Voltei para meu trabalho pesaroso. Fiquei me culpando por não deixar aquele aninal morrer ali como qualquer pessoa comum faria.
Contei o por que da minha falta ao segurança.  Ele me disse que o encarregado não tinha ido e bastava eu passar meu cartão que ficaria tudo bem.
Senti em seu olhar uma certa zombaria pelo meu ato.
Aquilo me fez ficar bastante irritado com ele e comigo mesmo.
Entrei para o parque e fui limpar tudo com o mau humor escorrendo pelos olhos.
Quando cheguei aos video-games vi um velho em andrajos. Cheirava mal. Tinha uma mochila a seu lado repleta de livros antigos.
O senhor se divertia num jogo e quando me aproximei vi que ele já passava dos 10 milhões em pontuação.
Aquela máquina era a mais difícil de todo parque. Tinha até um prêmio para quem conseguisse passar dos dez mil pontos.
Fiquei impressionado! Meu espanto se tornou maior quando ele se virou, olhou para mim e disse:
_ Olá Sérgio! Obrigado por salvar meu cachorro!
Fico te devendo essa.
E voltou ao jogo. Pediu que a máquina o fizesse perder anotou a pontuação em meu nome e saiu dizendo somente:
_ Isso deve bastar para o tratamento e o pulguento gosta muito de você. Ele diz que você é especial.
Nenhum humano comum recebe elogios dele.
Eu fiquei ali paralisado. Terminei meu trabalho sem entender nada. No outro dia fui chamado ao parque.  Tomei uma senhora bronca por jogar no expediente. Mas me pagaram o prêmio por vencer o jogo. Fiquei conhecido como o rei do fliperama. Muitos garotos resolveram tirar fotos comigo.
Inventei uma história qualquer sobre minha habilidade naquele jogo.
E assim ganhei uma promoção, salvando um cachorro esfaqueado. Mas o que me interessa saber é: Quem era aquele estranho homem que parecia conversar com máquinas e animais? Será que eu enlouqueci? Precisava contar o que realmente aconteceu e nem mesmo meu terapeuta acreditaria em mim. Por isso coloquei nesse papel.
Quem quer que aquele homem seja. Tenho apenas que o agradecer. O cachorrinho vive comigo. É dócil e de uma lealdade feroz.
E graças a minha exposição na imprensa consegui juntar grana para ajudar os abrigos que cuidam de animais.

Sons da noite

Caminhar a noite é uma experiência que sempre fascina. Os sons a noite são mais aguçados. É como se a ausência de luz tornasse tudo mais son...