Era
noite em São Paulo. A cidade que nunca dorme continuava a brilhar com suas
luzes e néons e eu de uma calçada parecia perdido ali no meio do caos.
O
natal se apresentava por todo o lado. Crianças felizes brincavam carregando
presentes, árvores e papai Noel estavam ali na minha frente e eu continuava ali
na calçada.
Sentia
me desprezado, não era visto. Dentre todos os heróis eu só me identificava com
o homem invisível.
Vagava
perdido entre mulheres seminuas se oferecendo para executivos em carros de luxo
e traficantes vendendo pó.
Eu
naquele momento era só mais um garoto que fugiu de casa, cansado de apanhar.
Minha
mãe morreu no parto e desde que eu me entendo por gente meu pai me chamava de
assassino. Suas amantes me maltratavam e não raras vezes eu terminava o dia
todo roxo.
Fui
tirado da escola nos primeiros anos e posto para trabalhar dentro de casa, onde
eu era saco de pancadas de tudo e todos.
Antes
de eu preferir o frio que a família eu pensei em me matar, mas não tive coragem
para isso.
Preferi
escapar e deixar tudo para trás. Mudei de nome e passei a vagar.
Às
vezes roubei para comer, noutras vezes dormi junto a lama e tive somente a
companhia dos cachorros.
Caminhava
pelas ruas sem ser notado. Era somente retirado a base de pancada pelos
seguranças dos comércios quando pedia alguma esmola.
Muitos
que fechavam o vidro na minha cara tinham no carro um adesivo: Deus é amor!
Outros tinham Jesus que me deu!
E eu
ficava pensando: Se esse é o amor, imagine o ódio! E se Jesus deu um carro para
ele, por que eu passo fome?
Um
dia tentei entrar em uma igreja. Li um panfleto amassado no chão de uma
rodoviária e quis saber como era. Fui barrado na porta.
Disseram
que eu não estava bem trajado. Ameaçaram chamar a polícia para mim. Sai dali
chorando. Sob a desconfiança de dois porteiros desconfiados sumi no frio da
cidade e dos corações.
Tive
várias oportunidades para cair na droga. Muitos amigos foram levados para esse
vício.
Eu
sempre tive medo, bebida e drogas lembravam meu pai.
Fome
era uma constante. Frio era a companhia nas madrugadas. Fugir a única opção.
Mas
naquela noite, olhando para uma igreja bem iluminada com o símbolo da cruz
pintado na fachada fiz um pedido pela morte.
Eu
queria morrer. Pelo menos morto eu poderia descansar. Cansei das agressões da
vida, dos olhares tortos, de tudo...
Pedi
para morrer e me lembrei do panfleto onde dizia: Pedi e vos será dado!
Havia
dois dias que não comia nada. Deitei próximo de uma árvore. A noite estava fria
e meus olhos pesaram.
Aquela
mulher idêntica à foto que tinha num quadro na casa do meu pai parecia gostar
de mim. Se sentir querido alimenta mais do que pão.
Sua
presença era fria e ela apenas sorria para mim. Tinham olhos profundos e bem
azuis que contrastavam contra sua roupa de tom negro.
Eu
estava cercado por toda sorte de deliciosos alimentos e em meu delírio fiquei
feliz.
Em
meu delírio eu era feliz. Mas ai os médicos me acordaram.
E eu
voltei a mim num hospital. Estava com soro numa mão e de tempos em tempos uma
enfermeira aparecia.
Logo,
apareceu uma assistente social e conseguiu contatar meu pai que veio a
contragosto junto com sua esposa.
Quando
me viu ficou profundamente contrariado. Mas manteve a aparência até a
enfermeira sair do quarto e disse:
_ Em
casa eu te acerto!
E
voltou a disfarçar. Eu estava apavorado. Quando ganhei alta três dias depois,
estava em pânico, tentei lutar para não voltar mas meu pai disse que eu era
louco e os médicos e a assistente acreditaram nele.
Caminhei
pelo corredor me sentindo morto. Iria ser sangrado igual o vi fazer com um
porco.
Abaixei
a cabeça e caminhei. Sentia o sangue gelar. Não tentei gritar ou algo do tipo.
Enfim parecia que meu desejo seria atendido, mas da pior maneira possível.
No
trajeto para casa meu pai e sua esposa pareciam concentrados em discutir. Eu
evitava olhar para eles. Tinha medo de ser assassinado ali mesmo.
Pararam
em um posto de gasolina e minha madrasta teve a oportunidade de me amedrontar:
_
Pequeno fugitivo! Seu pai quer te matar lentamente! Ele ficou furioso quando
soube que você estava vivo!
_ Eu
até sinto pena de você. Disse e riu longamente como o guinchar de um porco.
Meu
pai voltou e seguimos até sua casa. Era fora de São Paulo e pegamos a rodovia
rumo ao interior. Cada metro rodado aumentava meu medo.
Num
instante de pavor desejei que o carro perdesse o controle e batesse de frente
com uma carreta.
Passou
menos de um minuto após eu ter esse pensamento e meu pai atende o celular e
começa a xingar alguém do outro lado da linha, ele perde a atenção por um micro
instante da estrada quando manda a pessoa do outro lado da linha ir a merda.
O
carro gira e sai da pista certa, uma carreta acerta o carro na parte traseira e
atravessa o canteiro e é atingido por outro caminhão que pega o carro pela
frente.
Eu
voei pela janela e fiquei desacordado por alguns minutos. Quando voltei a mim
estava machucado, porém conseguia correr.
Não
me preocupei com meu pai e sua mulher. Nem sei o que aconteceu a eles.
Sai
dali e entrei num matagal bem espesso e pouco a pouco fui me perdendo ali
dentro.
No
fim próximo a uma árvore gigante eu encontrei novamente com ela e saímos para
viver um mundo de fantasias.